Questões
É
necessário destacar a diferença que há entre um cotidiano que se
banalizou de outro que se tornou enriquecido, que se exprime, muitas
vezes, na sensação de que tivemos um dia prolífico, satisfeitos
com nosso próprio trabalho, com a certeza de termos avançado ainda
mais longe na nossa própria tarefa. Costuma-se imaginar que aqueles
que falam com e como todo mundo são
“sociáveis”, pois eles são facilmente identificados, facilmente
tornados familiares, enquanto outros seriam “dissociáveis” e,
justamente por isso, supostamente pagariam um preço alto por não
viverem “como todo mundo”, por não fazerem as coisas que “todo
mundo faz” – e assim são acusados de viverem “isolados”. Mas
não se trata de isolamento, mas de algo que é muito sutil, que não
se percebe, que é ignorado frequentemente: trata-se da capacidade
seletiva de nos relacionar com as coisas que realmente nos
interessam, que, inclusive, podem ser pouquíssimas, quando
comparadas à abertura leviana e sem seletividade vivida pela massa.
Não se constrói um mundo próprio quando se vive de maneira vulgar
– em oposição a isso, o mundo selecionado de acordo com nós
mesmos, devido à nossa potência singular de existir, torna a
indolência difícil de suportar. Fazemos explodir a organização
tirânica da vida que é sustentada pela censura, culpa, sofrimento,
recompensa, reconhecimento, igualdade e medo, muito medo.
Como nos parecem os que se preocupam em defender a sua honra e,
em razão disso, agem movidos pelo medo de serem julgados por aqueles
que mais temem? Vigiam porque têm medo de quem os vigia, reprimem
para sustentar a boa opinião que os vizinhos terão deles. É
inevitável que eles se assemelhem pela falta, pela fraqueza, pela
baixeza dos seus hábitos. Por outro lado, o anonimato é signo de
distinção, de liberdade, de possibilidade de perceber quem
é o inimigo para que as suas forças não sejam
desperdiçadas gratuitamente. E, além disso, o anônimo faz a
distinção fundamental entre pequenas e grandes questões. Grandes
questões nascem quando se vê a folha de uma árvore inserida num
todo: galhos, tronco, a árvore no ambiente onde vive e cresce.
Grandes questões não estão dissociadas da habitação, do ar que
se respira, do que se alimenta, de como se ganha o seu próprio pão.
Grandes questões colocam em dúvida valores que entravam a
exploração de novas capacidades de agir. Já as pequenas questões
(que são mais frequentes) se contentam com a folha da árvore e
ignoram o resto. Pequenas questões nos dizem que tal pessoa é “assim
ou assado” em razão disso ou daquilo – e lá se vão
grandes doses de energia desperdiçadas para a preservação de
alguém que imagina viver desconectado do resto, de um “eu” que
ora sofre, ora está feliz, que também canta, dorme, come, que vive
para se exibir. Assim, as grandes questões são adiadas, pois elas
não são interessantes quando o orgulho doentio à raça, ao sexo, à
classe social e às demais representações serve para manter um
cotidiano banalizado.
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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.
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