Continuidade
A ausência total de origem e conclusão na produção do mundo elimina a noção de que seríamos a criação de uma entidade sobrenatural, que cumpriria um projeto ou modelo finalista predeterminado por meio de uma vontade superior à vida. Contra isso, radicalizamos o nosso pensamento quando podemos afirmar que sempre existimos e que sempre existiremos, desde que se compreenda que essa afirmação não tem nenhuma relação com o que dizem os espíritas ou outras doutrinas da reencarnação da “alma”. As nossas noções de origem e conclusão, nascimento e morte, por serem produtos da nossa capacidade de imaginar, deixam de alimentar as superstições religiosas quando pensamos a vida – e nós mesmos – como continuidade que se diferencia de si mesma, como potência indestrutível de superação. Ao invés da noção de origem, podemos pensar a vida como diferenciação, como mudança contínua. Afinal, existe apenas a mudança, o mundo é mudança, somos mudança – e podemos compreender que esse eterno escoamento do real não pode ser, essencialmente, fragmentado por etapas, tais como as que nos habituamos a fazer a respeito do conhecimento da nossa existência, quando esta aparece como “infância”, “juventude”, “vida adulta”, “velhice” e “morte”, pois é impossível que seja apreendido o instante que alguém nasce, que se torna jovem, adulto, idoso ou quando morre. Reduzir assim a nossa vida e a vida em geral nos mantém afastados do conhecimento de que vivemos sempre de maneira contínua, sempre de modo diferente – e é inevitável que a ignorância disso alimente as mais variadas superstições. Desejar que a vida continue através de nós, mas de outro modo, nada mais nos faz do que sentirmos que essencialmente jamais podemos ser destruídos – eis o saber do guerreiro, corajoso, que põe a faca entre os dentes e vai à luta, com a absoluta confiança de que seguirá presente para sempre. Ele tem a consciência de que cada instante que vive jamais vai se repetir do mesmo modo, que jamais deixará de pertencer ao elo que o mantém ligado ao devir do mundo de toda a eternidade... É impossível dizer com clareza todas as nossas mudanças de um dia para o outro, no corpo e na mente. É, também, impossível prever o que seremos no dia seguinte, como expressaremos as nossas ideias, o nosso querer, que mudanças viveremos – um seguir-no-mundo que nunca se submete ao cálculo e à previsão. O conhecimento de que jamais deixaremos de ser algo da natureza nos empurra para participarmos ativamente dessa continuidade criadora, tecendo o nosso futuro e o futuro do universo com autonomia e alegria, comandados por um autêntico amor cosmológico.
Comentários
bem! Escreve com a clareza que gostaria de ter para dizer o tanto que é fascinante a maneira com que nos aproxima do verdadeiro aprendizado sobre a nossa existência
Sou tua fã...sou fã da tua filosofia!
Grata pela gostosa leitura
Abraços da Eliana