Violência


A ideia de que a vida humana possa se desenvolver de modo completamente distinto do que é atualmente percebido ainda está longe de ser nítida para a maior parte da sociedade. Testemunhamos o desespero das instituições para aumentar a vigilância e o controle sobre os indivíduos na esperança de varrer, para bem longe, as forças do acaso que sempre ameaçam a gregaridade. Para defender suas crenças, as reformas dos modelos de educação, de trabalho, de família, são, inevitavelmente, apenas tentativas de conservar os princípios que buscam a homogeneização máxima dos homens. Dessa forma, aqueles que se dedicam a esse serviço nefasto de violência contra a vida humana tornam-se, como é notório, úteis à gregaridade enfraquecida: suas invenções abastecem o anseio da sociedade para aperfeiçoar a domesticação dos indivíduos. Uma sociedade sustentada pela mentira tem necessidade de novas mentiras que servem para mantê-la afastada das grandes questões que ela não quer enfrentar. Com efeito, a violência dos seus métodos tem como função ampliar a semelhança de agir, de desejar e de pensar entre os homens gregários, o que expressa o desejo fascista de alcançar uma “raça pura” constituída por indivíduos comuns e previsíveis e que, por isso mesmo, não representem mais nenhuma ameaça à sociedade. Tais métodos variadíssimos são sempre renovados por novas “comprovações científicas” que abastecem a conta bancária dos carrascos da vida autônoma. Não se pensa, ou melhor, não se quer pensar, que quando uma criança se rebela contra o ensino atual está apenas expondo a violência que ela sofre diariamente por meio de um modelo de ensino que pouco tem a ver com a sua vida. Seus anseios são outros, suas necessidades são inteiramente distintas das obrigações escolares que pretendem domesticá-la em razão de um “futuro melhor”, isto é, de um futuro sem diferenças, sem perturbações, sem imprevisibilidade. Diante disso, a criança responde com desdém, com “rebeldia” (com aquilo que atualmente chamam de “déficit de atenção” e “hiperatividade”) e contra isso os salvadores das instituições se veem com um trabalho de “correção” que parece interminável (será que eles sustentarão por muito mais tempo suas próprias crenças?). Mas contra essa tirania temos a invenção como a nossa única saída. O que é inadiável é inventarmos o nosso ensino, o nosso trabalho, a nossa família, as nossas distrações, tudo isso segundo os nossos mais sinceros anseios – por efeito, os modelos estabelecidos que violentam as singularidades são desprezados por nós. Em vez da ideologia, preferimos enfrentar a tela em branco. Tornamo-nos experimentadores e organizadores do nosso próprio modo de aprender – um sagrado autodidatismo, acompanhado também de grupos que se reúnem apenas... para aprender. Amar o que estudamos, como meio de intensificação da nossa própria vontade, faz jogar para longe o tédio que, inevitavelmente, abate os espíritos mais potencialmente livres quando estão entupidos de exames, tarefas e obrigações curriculares da triste educação oficial – pois a filosofia, a biologia, a antropologia, por exemplo, enquanto são conduzidas segundo as necessidades de diferenciação da vida humana, aparecem sempre como uma ameaça aos que precisam organizar o ensino segundo os seus interesses mais mesquinhos. Mas se podemos fazer isso com o ensino, podemos também fazer com o nosso trabalho, com as nossas viagens, com as nossas relações amorosas: sem contratos, sem classificações, uma abertura à produção dos afetos que nos interessam... A tela em branco diante de nós é uma provocação para enfrentarmos a difícil tarefa de arriscarmos, de amarmos o imprevisível, de sentirmos aquilo que fazemos sem ter a necessidade de nomeá-lo, de defini-lo racionalmente. Entregar os pincéis para que alguém pinte por nós, que nomeie para nós, é muito mais fácil, mas, certamente, somos desonestos com a nossa própria existência quando nos limitamos a isso.

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

Comentários

Sonia Altman disse…
Muito boa visão panorâmica de diferentes não necessariamente deficientes, sendo bombardeados na tentativa social de adestramento. Nesta reflexão fica aberto possibi-lidades,de difícil enfrentamento, mas a possibilidade de viver vivo. parabéns!