Ressentimento
O
ressentido volta-se para o seu passado e, quanto mais mergulha nele,
mais encontra objeções contra si e contra o devir do mundo. Se
fosse possível, ele desejaria ter feito outras escolhas, talvez não
ter se calado, talvez ter enfrentado alguns riscos e incertezas,
talvez não ter feito isso e aquilo. Desejaria, até, ter sido outra
pessoa – mas como imagina que o seu passado é impossível de ser
alterado, resta-lhe olhar para o seu futuro, para o futuro do mundo,
e a resposta para a pergunta “Para aonde vai a existência?”
parece-lhe teimosamente escapar. “Haverá um futuro melhor do que o
triste e injusto presente?”, insiste ele. A dor por não viver de
acordo com o seu desejo é, de fato, a sua maior objeção contra o
mundo. Seu cansaço crescente, a obrigação de cumprir os desejos
dos outros, a vida que não para de passar, a sucessão dos
acontecimentos que são desfavoráveis ao seu desejo, as ruminações
das impressões que servem para alimentar o seu ódio à vida, o ódio
às supostas causas dos seus males, tudo isso lhe faz imaginar que o
mundo, sua realidade inalterável, nada mais é do que repressão.
Cansado também de si mesmo, da inutilidade do seu ódio, o
ressentido imagina que sua luta pela vida, isto é, sua busca pela
felicidade permanente, é algo que parece ser impossível de ser
alcançado. Afinal, ele se dá conta de que as forças da vida
excedem o seu desejo – como isso o atormenta, percebe que a vitória
sobre o acaso é apenas uma quimera, uma ficção, um engodo. Resta
resignar-se com o sentido imposto do
exterior, tornando-se cúmplice da ordem moral que se alimenta do seu
sangue, que, através dos entorpecentes, faz livrá-lo
momentaneamente do terrível sentimento do nada, mas que também o
ameaça, castiga, produz medo. Portanto, as relações de poder não
se explicam pela famigerada noção de luta de classes. Elas se
constituem por indivíduos que
não agem,
que padecem, que sofrem com o que lhes acontece, e que por isso são
movidos por vingança, por vontade de corrigir os homens, de corrigir
o mundo. Em razão do ressentimento, é estabelecida uma dependência
mútua entre o senhor e os seus servos, de modo que os servos dizem
para si mesmos: “Não conseguiríamos viver sem o rei!”; e o rei,
da mesma forma, diz para si: “Não conseguiria viver sem os meus
súditos!”. Impotente, o ressentido quer uma pequena felicidade,
uma pequena ocasião para ser invejado, algum elogio, algum
reconhecimento, algum sucesso, alguma fama – e isso tudo ele
recebe, sem dúvida, desde que seja submisso ao poder. Mas o homem de
poder, por ser ressentido, também é servo daqueles que o servem:
como também quer ser invejado, bajulado, reconhecido, é inevitável
que dependa de quem se submete para satisfazê-lo. Então, todos
servem, os impotentes e ressentidos lutam por sua própria servidão,
antes a servidão, antes uma migalha de prazer, do que viver de outro
modo, onde haja algum risco, alguma imprevisibilidade, alguma
criação. Eles querem, ou melhor, necessitam do
poder econômico, da acumulação de bens materiais, de bens
culturais (de uma suposta "sabedoria"), para que a sua
miséria existencial seja disfarçada. Querem dinheiro, muito
dinheiro, para serem admirados, invejados, para se sentirem
distintos, superiores, senhores de alguma coisa. Portanto, o
capitalismo não é nada misterioso, pois ele é apenas sintoma da
necessidade dos ressentidos esconderem, até de si mesmos, o seu
sofrimento. É possível perceber que não há, de fato, oposição
entre “ricos” e “pobres” : enquanto os indivíduos são
ressentidos, permanecem de mãos dadas para a reprodução de tudo
aquilo que envenena a vida humana... Ah, e como eles olham com ódio
quando se sentem “incultos” e “medíocres” diante de alguém
forte, exuberante, alegre e livre do ressentimento! Mas é inevitável
que a mediocridade do ressentido – que faz até ele se sentir
incomodado – leva-o a tentar algum destaque numa atividade que não
seja a do “trabalho-pelo-lucro”: essa é a razão que o leva a
tentar desesperadamente algum sucesso (leia-se: alguma admiração,
alguma inveja...) na música, na literatura, nas artes plásticas.
Mas como ele luta contra o
tempo, a superficialidade da sua “atividade artística” apenas
denuncia a sua esterilidade, fruto de sua péssima alimentação das
sensações e do tempo. E a política dos ressentidos modernos é
para rir: sua democracia representativa é pura distração, circo,
passatempo, ferramenta de poder – o próprio ressentido percebe
cada vez mais que ela não pode ser levada a sério. A democracia
serve para desviar o olhar de si mesmo e, dessa forma, reforçar os
afetos de rancor que multiplicam as exigências de que alguém (o que
habitualmente se chama de “político”) deve resolver os problemas
do mundo. E quais são os problemas do “mundo”? Certamente são
os que ameaçam a sua tranquilidade, a sua pequena felicidade, em
suma, o seu
mundo privatizado...
“Um mundo sem dor, por favor!”. Mas tudo se
decide aqui: a dor, para o ressentido, é sempre o começo
do seu fim,
enquanto para quem é sadio, é apenas o começo
da sua liberdade de agir.
Mas isso é dizer que, enquanto o ressentido nega a vida, odeia a
vida, o outro, o criador, afirma a vida, ama a vida. Mas isso é
também dizer que, enquanto o ressentido olha para o seu passado com
um olhar de reprovação, o homem afirmador não apenas olha para o
seu passado, mas também se diverte, brinca, se alegra com ele, faz
alguma coisa realmente grande com ele.
Mas isso tudo é, enfim, dizer que, enquanto o ressentido entrega o
seu destino nas mãos de um parasita, que
promete livrá-lo do “mal”, o homem sadio recusa essa submissão
e assume a responsabilidade pelo seu próprio destino – ele não
foge, não precisa fugir da vida, porque
sabe que não há nada fora da vida.
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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.
Comentários
excelente texto caro Amauri.
abraço afetuoso