Tendências
Sob as pessoas, as raças, as nacionalidades e as classes sociais estão as forças cujas tendências afetivas fazem e desfazem as regras do jogo político, que reforçam o sentimento de descontinuidade que alimenta as mais diversas hierarquias representativas, mas que também fazem desabar o preconceito que surge dessas divisões imaginárias. Por isso que aquilo que habitualmente é denominado, no sentido político, de “direita” e “esquerda”, são apenas signos dessas tendências afetivas que tecem um campo social. Chegamos a definir por “vontade” a nossa tendência à conservação do organismo, algo que é indissociável da posse das coisas que nos dão prazer. Mas a necessidade do acúmulo de bens que não são indispensáveis à nossa conservação surge quando estamos completamente dominados pelas tendências voluptuosas. Em contrapartida, definimos por “desejo” uma espécie de “vontade de explorar”, ou seja, como tendência de sermos atraídos por micromundos heterogêneos que nos despersonalizam. Portanto, para nós, “direita” e “extrema-direita” exprimem um domínio, que pode se tornar absoluto, das tendências voluptuosas em nós mesmos, de modo que a conservação do livre mercado e dos valores tradicionais da família concernem à necessidade da obtenção desmedida dos mais diversos prazeres, como se isto fosse a suprema finalidade da existência. Porém, esses prazeres excessivos são alcançados mediante o sacrifício dos que não pertencem à suposta forma superior do branco, do norte-americano, do europeu, do rico, do heterossexual, do homem... Mas entendemos que a “esquerda” também exprime um domínio de tendências voluptuosas, com a diferença de que o acesso às coisas que nos dão prazer deve ser distribuído de modo menos desigual possível ou até chegar a um ideal de igualdade. Por isso ela, ao menos a princípio, defende a posição dos que são diferentes de uma suposta forma superior, como os negros, os índios, os latino-americanos, os africanos, os pobres, os homossexuais, as mulheres – a consequência disso é que, enquanto o progressismo esquerdista ainda se reduz à forma do indivíduo, necessariamente se mantém conservador, pois não consegue combater o poder das tendências voluptuosas naqueles que são oprimidos, ocasionando, por isso, a insatisfação popular com um Estado “reformado” que não consegue atender plenamente as exigências consumistas que vão muito além das necessidades da conservação do organismo. Nesse sentido, “direita” e “esquerda” estão muito próximas, e é por isso que denominamos essa espécie de esquerda de subordinada e inferior... Por outro lado, denominamos de esquerda insubordinada e superior as ações que permitem que as nossas outras tendências não sejam reprimidas pelas tendências voluptuosas: as nossas tendências desejantes passam a ser estimuladas por intermédio de ritmos que desfazem as hierarquias representativas e também a necessidade de nos submetermos ao Estado (talvez uma certa “extrema-esquerda” possa ser considerada uma transição, com mudança de natureza, da esquerda inferior para a esquerda superior). Certamente, há diferenças de grau entre “extrema-direita”, “direita”, “centro-direita”, “centro”, “centro-esquerda”, etc., sem haver pureza nessas denominações, pois, como dissemos, esses signos ocultam forças com tendências em constante mutação, possibilitando as mudanças de grau que ocorrem na existência de alguém, de um partido político e de um movimento social. Mas há diferença de natureza disso tudo com relação à esquerda superior: a diferença essencial entre a esquerda inferior e a esquerda superior é que a primeira é tutelar e ainda está subordinada à forma identitária do indivíduo com suas tendências voluptuosas, enquanto a segunda apenas se serve da forma identitária sem se subordinar a ela, utilizando-a apenas como uma estratégia política para acelerar algo que desindividualiza o índio, o negro, o pobre, a mulher, e também o branco, o rico, o homem... Uma pessoa qualquer, um governante, um partido político, são, antes de tudo, conjuntos de forças com tendências voluptuosas e tendências desejantes – alguém pode passar muitos anos dominado por uma vontade excessiva de ter prazeres, acreditando que, por ser branco, norte-americano e de classe média, é superior aos negros, índios, latino-americanos e pobres, até que, subitamente, suas tendências desejantes são estimuladas até o ponto em que ele possa ter a experiência da consciência continuante e do comunismo cosmológico... A esquerda superior age subordinando a si toda representação, ou seja, ela se serve do organismo, da identidade e até, conforme o caso, das inclusões sociais, de um governante e de um partido político, para colocar em movimento os desejos de ressonância que nos abrem ao pensamento do Sempre.
Comentários